30 março, 2010

«« Poeta e dor ««


Repito em palavras vagas
O que penso que não tem jeito
Nas minhas horas amargas
Assim vou abrindo o peito

Falo do medo que tenho
De um dia virar vento
Tudo aquilo que detenho
No peito como alimento

Por vezes fico perplexa
Onde vou buscar a força
Se penso que estou dispersa
Logo salto feito corça

Confesso que tenho medo
Que me olhes sem me ver
Confesso não é segredo
Que me vejas apenas mulher

Mas presta muita atenção
Ao que te vou agora dizer
Escrevo, escrevo até mais não
Para que tu me possas ver

E assim te dou o melhor
Com que a vida me presenteou
Este jeito de poeta e dor
Escrevendo tudo o que sou

«« Espuma ««


Tenho medo
De acordar e não te ouvir

Tenho medo que os dias deixem de ser iguais
De me sentar numa cadeira e que ela me prenda
Só porque pensa que os meus dias são banais
O que ela não sabe, é que o repetitivo é oferenda

Ter-te no pensamento é o calor a sentir
A envolver-me, enxotar a névoa fria
É a certeza constante que os meus dias não são de fingir
E que a solidão, é metáfora vazia

Tenho medo de acordar um dia
E que a cadeira se transforme em espuma
Apenas porque nesse dia o sol fingia
Que não me via, tenho medo de virar coisa nenhuma.

«« Promessa ««


Senta-te ao meu lado, senta-te apenas
E adormece no silêncio, que não é silêncio
É o eco dos montes ao longe, espaço imenso
Por onde serpenteiam as vontades silenciosas
No instante em que te sentares, repara nas açucenas

Sim, repara nelas, na suavidade da cor
São a mão de Deus, ensaiando uma aguarela
Repara na beleza que de tão singela
Esconde a cara envergonhada num leve rubor
Ao olhar os meu olhos, e ao ver o amor

Com que olho os montes lá adiante
Com que te bebo em cada olhar
Não sei, se amo mais esta terra, ou a ti meu amante
Não estou dividida, é uma interrogação no pensar
Será que foram os montes que te trouxeram para me amar

Será que um dia a terra me responde
Porque me fez regressar, que força imensa foi essa
Ao colocar-te no meu caminho, como se cumprisse promessa.

«« Inexplicável ««


Será possível explicar o inexplicável
As faltas que se sentem ao longo da vida
Aceitei sempre como inevitável
Uma falta sombria mas escondida
De tão negra que era, deixei de a ver
A não ser quando me visitava nos sonhos
Madrugada fora, e teimava em ser
Um eco difuso mas tristonho
Poderei um dia explicar o inexplicável
A falta cessou, disse-me adeus foi embora
Bateu com a porta de forma implacável
Agora és tu que me visitas, noite fora.

29 março, 2010

«« Desnuda ««


Desnuda em cada frase por dizer
As mil falas que tenho p´ra te contar
Desnuda nos meus olhos a esconder
Um rio de sonhos a borbulhar

Fecho-me num silencio gélido
Não é mistério, nem fascínio
É um sentir à muito esquecido
É um campo agreste sem pousio
Restolho que jaz caído
Por onde as aves esvoaçam, como baixio


De um rio perdido no tempo
Por onde não nadam peixes
Ficaram presos no vento
Que assolou o meu olhar, não me deixes
Não me deixes ficar calada, não no momento
Em que os teus olhos me dizem, meu amor és…

«« Poema de amor ««


E se eu te escrevesse um poema de amor
Com ele desnudaria as minhas aflições
Depois ficaria a olhar-te
Como quem espera que o dia nasça
Para de novo renascer também

Em cada linha assentaria o meu olhar ciumento
Sempre que as tuas mãos posam nas minhas
Os ciúmes da minha boca que quer beijá-las
Mas as minhas mãos não param de segurá-las
Em cada silabada carregava a emoção
De sentir o toque da tua mão
Levemente ou com sofreguidão

Na página em branco do caderno da vida
Desenharia o teu rosto, singelo
Um tanto ou quanto sisudo, ou então num sorriso estonteante
Quando te digo, nada
O que tu não sabes é que em cada nada repetido
Está um pouco de tudo, apenas não o digo
Espero que tu adivinhes, mesmo as cicatrizes mais profundas
Aquelas que eu já esqueci, sei que as adivinhas

Se eu te escrevesse um poema de amor
Certamente que lhe tirava as rimas, rimas para que servem
Acrescentava-lhe uma lágrima fugidia, num olhar longínquo
Adornava-o com retalhos da planície em flor
Por fim juntava-lhe os beijos que as minhas mãos guardaram.

27 março, 2010

«« Amanhã ««


Amanhã sairei por aí ao encontro da vida
Em cada mão levarei a nudez
Vil e rude da minha pequenez
Irei num caminhar continuo procurar uma ermida

Aquela que deixei desmoronar, não sei onde

Virei a cara num gesto que transponde
Apenas porque gritou e ninguém lhe responde
Da ermida não resta pedra, será que se esconde

Do amanhã, ou de uma vontade destemida
Que teimo a todo o custo dar como perdida
Amanhã, direi estou de partida.

«« Seja o que deus quiser ««


De que é feita a massa homogénea
De um país em decomposição
Parece ladainha de feira, em dia franco
Num marasmo secular, reina a acrobacia
Para alguns chega a ser anorexia
Tal a complexidade da ideia
Que tentam incutir nas mentes desligadas
O país prefere ir à feira
Encher o cabaz de qualquer maneira
Desde que esteja cheio, de bagulho
Que encha as vistas opacas, não é comigo
Encaminho o olhar noutra direcção
Para as novelas na televisão

Será um país surdo, se assim nos aprouver
Será tudo, mas tudo, o que não vemos
Será uma merda, seja o que deus quiser.

Poetamaldito (pseudónimo)

«« Bebedeira ««


Quem me dera poder gritar, estou sóbria
Carrego uma lucidez despiciente
Embebedei-me solenemente
Em tudo aquilo que me abstraia

Não, não estou sóbria, estou bêbada de azedume

Com versos corridos esgravato o queixume
Ponho mais lenha e lenha no lume
Em versos fingidos vou alcançando o cume

Da minha existência, mas a minha glória
Não é escrever sobre a minha vitória
É esgravatar na lama, dar a mão à palmatória

26 março, 2010

«« Cruz ««


Pudera eu dizer, a dor não sei o que é
Não sei se está enraizada nos meus ossos
Não a vejo nem sequer o lamiré
Quando me curvo cansada por falta de acertos

Não me olhem como se fosse bicho

Sempre que me rebolo no chão e lhe junto um sufixo
O meu olhar nem sempre é fixo
Como o prego onde pende um crucifixo

Quem me dera dizer tenho pouca fé
Na dor que não mostro, não lhe ofereço banzé
Quem me dera dizer… dor, afinal o que é.

«« Não sei ««


Não sei
Não sei como exprimir o pensamento
Uma vontade férrea neste momento
De te tomar no colo, afastar o cinzento

Não sei, ai como me corre o tempo
Desfaz-se em novelos soltos no vento
E eu não sei dizer-te o meu tormento

Não sei, como dizer a minha saudade
Um aperto no peito, atrofia a vontade
De gritar bem alto, meu amor é verdade.

«« Envelhecer ««


O ar cheira a cinza
Por dentro o vazio

O vazio faminto quer
Absorver a intempérie
Num rosto de mulher
O meu, paupérie

Não sei ao que cheira
Um brilho difuso
De qualquer maneira
É estranho e confuso

O ar em que habito
É pobre o sentir
de um vazio extinto
num sóbrio tinir

O ar cheira a cinza
E um nó corredio
Esgana a brisa
Em franco fastio

Rosto de mulher
O meu ofuscado
Um amarelecer
Um retrato agastado.

Cheira a cinza o ar
Faúlhas ao saltos
Um vulcão a rosnar.
Cai-me a cinza nos lábios

Rosto de mulher
Anos verdes, ao longe
Saber envelhecer
É sebenta de monge.

25 março, 2010

«« Dor ««


A dor que me afaga o peito
É uma dor morna, sem simetria
Esta dor, tamanha dor, quem diria
Que a sinto e tão mal a vejo
Não porque não quisesse, eu sabia
Sabia, que ela me mataria um dia
Olho-a pela nesga com despeito
Pela nesga em que o sol me fugia
Esta sim estranha simetria
O sol a fugir do olhar, ai como fugia

E eu afogada na dor
Coração aos saltos, travo na boca
Salta, salta coração, deixa-me parecer louca
Louca de raiva, e de medo, um tremor
Assola-me a alma já gasta, coisa pouca
Pensarão os que me virem, vai louca, louca
E… nesse instante, a dor vestida de estopa
Troca-se por fina roupa
Não quer chatear o mundo, prego e estopa
São coisas banais, mas são rigor
A dor que é obra sem autor
Mesmo sendo dor sem clamor
É um verso, numa voz rouca.

«« Medo ««


Meu amor, porque desgastas o medo
O medo é a recordação
Que peca por ser o que é… medo
Descabido, de esquecer o que se foi
De tentar vencer o inevitável
Numa emoção miserável
Meu amor o medo dói
Tal qual chaga profunda
Cratera de lava quente
Meu amor se ficas ausente…

O medo toma posse de mim

E assim, assim, talvez mais
Com medo que os dias não sejam iguais
Por entre chuva, vendavais
Soltam-se as lágrimas em ais.
Ais…por não saber por onde vais

Enquanto o medo me faz companhia

Meu amor, não desgaste o medo
Ele é feio, mas é solúvel
Pode chegar manhã cedo
E á noitinha arder …feito papel.

23 março, 2010

Contos «« Uma mulher que podia ser nada ( II Velório)««



Meio dia e meia hora.
E o telefone continua em silencio, parece que está sentado na fila de trás de um velório, daqueles a que vamos por bem parecer, vamos porque precisamos de ser vistos, por este ou aquele motivo, o morto esse mal conhecemos, lembrávamos-nos dele sempre que aparecia nas páginas dos jornais, embora, que por um motivo que a memória recusa lembrar já nos tenhamos cruzado com ele, em qualquer sitio mas a imagem deixada foi tão ténue, que agora ali, sentado na ultima fila do velório, o telefone se ache um paspalho, um actor de teatro apupado diariamente devido ás más representações.
E ela ali está, sentada de frente para o telefone, e sente-se o morto que o telefone vela.
Perdeu a noção do tempo, sabe que se levantou e pouco mais, nem disse bom dia ao espelho, esse é outro, um sacana de primeira que teima a todo o custo mostrar-lhe a realidade, mas quem lhe disse a ele, espelho insípido, que ela quer que lhe mostrem seja o que for. Por mais alguns minutos olhou o monstro, que a vela silenciosamente, depois deu meia volta e enfiou-se na casa de banho, tomou um duche rápido vestiu a primeira roupa que lhe apareceu e correu escada abaixo, precisava de ar puro de falar fosse com quem fosse, caminhou sem destino e deu por si a entrar na mercearia do bairro, o merceeiro homem de muitas falas olhou-a de alto a baixo e gritou, - bom dia minha senhora, - O raio do homem podia falar mais baixo, por acaso pensará que ela é surda.
-Bom dia retorquiu, como está o Sr. Manuel.
Mal minha senhora muito mal, sabe, é esta ulcera que não me larga.
Embrenhou-se pelos corredores estreitos da mercearia, por entre compotas e garrafões de lexivia, havia de tudo um pouco, a mercearia recordava o largo da fonte em dias de feira, de onde o freguês nunca saía de mãos a abanar. De vez em quando repetia maquinal-mente um sim, talvez, ou não, ao rosário de lamentações que o pobre homem ia desfiando, ele era a gota que não o largava, os impostos por pagar, os fregueses que levavam fiado e desapareciam, a mulher que tinha fugido com um caixeiro viajante fazia mais de trinta anos, não que não tivesse voltado a casar, claro que casou com a sua Mariazihna , que era uma mulher e pêras, uma daquelas que já não se fazem, mas a primeira estava-lhe atravessada nas goelas, deixá-lo por aquele pelintra a ele um homem com as suas qualidades.
Pegou no pão que precisava de levar e de novo se abeirou do balcão, onde o merceeiro continuava a tagarelar, desta vez com o homem do talho que tinha ido comprar os cigarritos.
- Pois é Sr. Manuel este vicio ainda me vai matar, até logo que a freguesia não espera, e assim como entrou saiu, correndo em direcção do talho que ficava do outro lado da rua.
O Sr. Manuel especa, olha-a de cima a baixo como se tivesse visto assombração, e replica no vozeirão que lhe é característico.
- Ó minha senhora diga-me lá, vossemecê já mora no bairro há um bom par de meses, e nunca tive o privilégio de ver o seu excelentíssimo esposo.
- Nossa Sr. Manuel, do que você se teria que lembrar agora, ó homem claro que não viu eu sou duplamente viúva.
O bom do homem olhou-a de boca aberta levando a mão á cabeça , tentando alisar os poucos cabelos que lhe restavam, fechou a boca, abriu de novo e voltou a fechar, como se tivesse mordido a língua, até que disse a meia voz.
- Duplamente viúva, ó minha querida senhora desculpe não sabia, os meus sentimentos.
- Senhor Manuel, eu sou viúva de marido vivo, e viúva daquele com quem me casarei um dia. Por isso não se preocupe.
O merceeiro nem pestanejou, ela deixou os quarenta cêntimos que custava o pão em cima do balcão e saiu no seu passo apressado.
Quando chegou a casa, olhou de relance o telefone, este mantinha-se imóvel no velório, nem uma lágrima o desgraçado deitava pelo finado.
Terriiiimmm, de um salto levantou o auscultador.
-Está sim. Ouviu-se do outro lado da linha.
- Estou
- Fala da Portugal Telecom se nos puder dispensar uns minutos gostaríamos de lhe levantar algumas questões, é um inquérito simples que estamos fazendo junto dos nossos clientes tendo em vista o melhoramento dos nossos serviços. A senhora tem alguma reclamação a fazer dos mesmos.
Então não querem lá ver, veio mesmo a calhar este inquérito, reclamação claro que tem.
- Tenho sim, retorquiu, quero reclamar contra o silêncio do meu telefone.
- Como assim, respondeu a voz do outro lado, num tom de espanto.
- Silêncio, a senhora não sabe o que é silêncio, o meu telefone passa dias e dias sem tocar. E a culpa só pode ser vossa, claro está.
- Adiante respondeu a voz, vou colocar-lhe a segunda questão.
- Qual adiante qual carapuça, enquanto não me resolverem o problema não respondo a mais nada. E desligou o bendito aparelho.
Encaminhou-se para a cozinha, mas voltou atrás e de dedo em riste dirigiu-se ao imóvel telefone.
- Ficas aí velando o morto e eu é que faço figura de parva.

19 março, 2010

«« Salto ««


Só sou o que tu vês…
Quando não me canso
Depois…
Embarco numa Piroga
Imagino-me Sorco!
E as águas riem
Em gargalhadas flácidas
Entornam a cegueira
Esta cai-me aos pés…
E agora…
Achas que lhe salte em cima?

18 março, 2010

«« Calada ««


Meu amor em quantos silêncios
Falo contigo na calada da noite
E nas longas conversas que mantenho
Falo-te de uma floresta…
Onde os pássaros são livres e afoitos
Mesmo que o vento por vezes açoite
As árvores na sua sonolência

E com engenho…

Uma arte que não aprendi
Mesmo assim na noite insone
Meu amor falo de mim, falo de nós
Afino a aresta…
Imagino-te ali.
Aqueces-me num abraço que arde
Num braseiro manso, que espalha beijos

Nas faúlhas, cintilantes que saltitam…

Assim eu soubesse saltitar!
Meu amor o silêncio iria esconder
Lá, na floresta do inconsciente
E assim, eu iria bem alto falar
Que és o meu sol no amanhecer
És o meu ninho, mesmo no silencio aparente.

«« Contos- Uma mulher que podia ser nada. ( I. Realidade crua ) . ««


Olhou o espelho, como quem olha a pira funerária onde jazem os restos mortais, de um qualquer herói Celta ou Ibérico . Não que se considere heroína, pelo contrario, sempre fora a seguidora silenciosa de Reis sem trono. Voltou a mirar-se no espelho, desde pequena que sempre que se sentia perplexa, olhava o espelho, como se o reflexo frio que emana lhe desse as respostas que necessita, e hoje não era diferente. Desde há algum tempo que se sente vazia, aliás, essa sensação caminha a seu lado desde que se conhece, por breves períodos esquece-se dela, mas são tão ténues que a memória a trai.
Num novo olhar, desta vez mais demorado, repara nas pequenas rugas que circunscrevem o globo ocular, que afinal não são assim tão pequenas, apesar delas ainda consegue iludir aqueles que lhe tentam adivinhar a idade, idade essa que sempre fez questão de sublinhar, essa, uma das suas vaidades, dizer quantos anos tem e ver a cara de espanto de quem pergunta. Mas, as rugas estão mais profundas, a pele está baça, como envelheceu sem dar por isso. Será que não deu mesmo, ou será que se ilude a si própria.
Nesta manhã acordou com uma vontade louca de fazer algo de novo, lembra-se que antigamente dizia de si para si, um dia ainda farei tudo o que gosto de fazer, gosta de arte, gostava de visitar os grandes museus, gosta do mar pela manhã, um dia iria acordar na praia, iria ao municipal, ver uma opera famosa, iria ao teatro, ver Shakespeare, iria, sim um dia, iria ter alguém com quem repartir a vida, tempos houve em que esse acreditar a mantiveram de pé.
O que o tempo nos faz, até os sonhos corrói, e passamos de sonhadores a realistas frios e calculistas num estrelar de dedos.
De novo o espelho, olha-a como se não a visse, nas circunstancias da vida essa posição é confortável, olhar e não ver, mas ao espelho ela não perdoa, o espelho tem obrigação de a ver, real, tal como é.
Num movimento brusco vira-lhe as costas, pega na mala e sai porta fora, caminha como sonâmbula pelo bairro, ao fim de alguns minutos pára a olhar para uma montra onde num gesto de chamamento está exposto um cartaz de tamanho razoável onde se lê. Entre compre aqui o presente para o seu pai, dia 19 de Março é o dia do pai. Pai mas que pai, de pai só conhece o nome.
O espelho persegue-a, agora está estampado no vidro da montra, um ligeiro sorriso ao canto da boca, recorda-lhe o que alguém lhe dizia em criança, faz-te à vida que ela não se fará a ti. Vida, será a sua vida, trabalha feito uma condenada, passa mais horas no serviço do que em casa, o tal do serviço tornou-se a sua casa, essa é que essa. Não tem amigos, apenas conhecidos, as amigas quando se divorciou foram-se perdendo aos poucos, coisa que ainda não conseguiu entender, ás vezes pensa que é por inveja, têm inveja dela, ou por despeito, por ter feito o que muitas almejam fazer, e não são capazes, por medo, ou por conveniência. Resta-lhe duas ou três pessoas, mas todos demasiado ocupados, nesta era tudo e todos são demasiado ocupados. Depois existe outro inconveniente nos seus relacionamentos, tem um gosto apurado para o belo, e nos dias de hoje o banal e corriqueiro virou moda, não gosta de centros comerciais e os centros comercias são por excelência um ponto de encontro, ela não se enquadra em certas modas. Outra coisa que gostavam de lhe atirar à cara, tens a mania que és fina, antes fina que casca grossa, retorquía.
Andou mais uns metros. Parou como se tivesse sido apedrejada, deu meia volta e tomou o caminho de regresso a casa, pela cabeça deslizavam pensamentos a mil, que faz sozinha, porque não procura companhia, maluca, sim maluca, um destes dias está velha de vez e senta-se no banco da praça, a dar milho aos pombos, isto se o reumático não a prender a uma cadeira, ou pior a uma cama.
Nesse instante tomou a decisão mais importante nos últimos tempos da sua vida, pelo menos a que lhe parece mais importante, não pode continuar a passar os dias de descanso sozinha sem ter ninguém com quem falar, vai pegar no telefone, e vai convidar alguém para almoçar, melhor, vai mandar um email.
Entra em casa e senta-se frente ao computador, abre o correio electrónico e deixa correr o olhar pelos contactos, um a um, daqui a pouco decide a quem convidar, abre a página do site onde escreve, um sorriso aberto enche-lhe o rosto, estão lá todos, os seus amigos, tal como ela ali estão em casa, ali desabafam, conversam, chamam nomes uns aos outros, mandam beijinhos e abraços, mas estão juntos numa mesma realidade, a solidão.
Fecha o computador, e deita-se, são dez da manhã e só lhe apetece dormir, amanhã é dia de trabalho, vai ver os conhecidos, porque os amigos estão fechados dentro de um computador.



........................Nota da Autora

Desde há algum tempo que tenho vontade de escrever sobre a mulher, uma das muitas que preenche o quotidiano citadino, nas suas mil histórias, nos encontros e desencontros do dia a dia, inicio aqui esse ciclo, quero deixar bem claro que esta mulher, porque vai ser sempre a mesma que a autora retrata, não é ninguém e poderá ser qualquer uma de nós, vou-me basear em factos concretos numa mistura dissimulada com o irreal, factos que qualquer uma de nós mulheres, pode viver com mais ou menos intensidade. Para escrever estes contos, tenho como primeira ferramenta a observação cuidadosa das realidades,tanto sociais como humanas.

«« Carta a mim mesma ««


Esta madrugada escrevo. Uma carta a mim mesma.
Acabei de vislumbrar o seu olhar guloso
Ou está doida… ou está só… enganosa
É a forma de escrever seu curioso

Escrevo-te esta carta, nada
Como nada é a realidade quando escrevo
Escrevo-te esta carta e assim me atrevo
A dizer o que não sei, atrapalhada

Fico sempre que penso… o pensar mal me faz
Penso que escrevo quase nada, num tanto que sou capaz

De falar à muito perdi o jeito
Para quê? Está louca logo diziam
Agora ponho tudo no papel, a preceito
Coitada louca está, mal fariam

Se me lessem, e me vissem como sou
Mal fariam… se me olhassem a direito
Sou a tal que vou escrevendo, aqui estou
De alma vazia… nem tudo é perfeito

Perfeita seria eu se mentisse, ou iludisse
Quem navega em mar alto, tem mais valor

Pobre de mim sou pescadora no areal
Onde a maré vem despejar, todos as coisas
Que o mar rejeita numa fúria abismal
Como abismal são aos seus olhos todas as lágrimas

Aquelas que esta carta não mostra
Mesmo agora que acabei de me escrever
Vejo o seu sorriso igual a ostra
Em prato raso prontinha p`ra comer

Por favor deixe-me terminar, um abraço e um beijinho
Um calor, para mim é tudo ou nada
Atenção, é aquilo que preciso com carinho
Do nada que sou… para nada, assim dou esta carta por acabada.

16 março, 2010

«« Olhar ««


Se pensas que não vejo o que não queres
Então o sol encobriu-se
Quem sabe, o mar galgou…
Olho, e calo o que não quero dizer-te através
Do olhar doce
Espera, o mar por hora sanou…

Se pensas… que não te quero
Amedrontar com o som difuso
Da minha razão gasta, talvez casta
Então és um átomo que por vezes supero
Mas… é a mim que tornas recluso
Na inquietude da ideia estafada

Pois é! Assim passam as maresias
Levando um breve suspiro
Tão breve e leve que do mar retiro
Os passos marcados pelos dias
Dos quais as noites e o ver perfazem o trio
Da minha, da tua existência, num olhar matreiro.

Queres ensinar ao mundo o que é a poesia
Ensurdecedor o teu eco absurdo
Os mudos falam por gestos
Aos cegos deu Deus o tacto
Os poetas nasceram com aura.

«« Desejo ««


Meu amor, ao despontar o luar não digas nada
Olha-me apenas, verás no meu olhar a névoa
De quem cala o que sente, água parada
Na represa onde afogo, o desejo que não voa

Meu amor, ao despontar o luar se chorar, olha
Verás a lágrima que cai no chão seco
Desfaz-se em mil partículas de escolha
A escolha que não faço, quando calo o eco

Da palavra, que me inunda o crer, quem sabe
Inunda também o ser, aquele que não sou
Aquele que o luar numa noite perdida matou

Mas o luar, por vezes é brilhante e inunda
O desejo,que submerge na ânsia em que não cabe
O eco aflito temendo que o desejo não se acabe

Júlia Soares ( pseudónimo )

«« Apressa o passo ««


Apressa o passo, que a sorte espreita lá adiante
Silenciosa, escuta o cantar do Gaio
Nesse instante, um bandolim velho
Repenica ao sabor da brisa ligeira, distante
Tão distante que me abstraio
Da curva que esconde a morte, no espelho

Da vida. da morte não quero saber
Viro a cara, injecto o pensamento para lá
Apresso o passo… escuto o Gaio
Em mil falas, uma linguagem a amadurecer
Ao meu ouvido afluirá
O murmurar do vento no mês de Maio.

15 março, 2010

«« Silêncio ««


Há um silencio que mata
É o espiral de qualquer silencio
Aquele que não vê que o tempo passa
Aquele que bate o dente com frio

Há um silêncio que mói
Pela calada, hora morta
Bate à minha ou a qualquer porta
Entra e destrona, como dói
O silencio imposto, mas diplomata
Não grita é subtil, esfrangalha
As vontades morrem em fornalha
Que tudo quebra, feito aço que corrói.

13 março, 2010

«« Os teus cabelos ««


Quero enrolar sobe os dedos famintos de sentir
Cada cabelo branco que descai sob a tua nuca
Pouco importa a cor que outrora tiveram
Ou o toque sedoso que outros dedos tocaram
Quero, acabei de concluir
Que em cada fio do teu cabelo
Meu amor, os meus dedos acabam sempre por cair.

Júlia Soares ( pseudónimo )

«« Lágrimas ««


Há um nó na garganta que oprime
Os dias que espreitam ao longe
As nuvens que correm velozes
Esperam, que o tempo passe
Quem sabe choverá…

Oprime e cala o desaire
De partir e não olhar para trás
Este grito castrado, há saída
Enleia-se nas nuvens do meu olhar, distante

Um pingo de chuva cai na ruela
Silêncio…

A calçada molhada, é fria
As nuvens pararam agora
O tempo olhou-me e virou a cara
Não, não chove…

São pingos de sal, que a garganta engole.

11 março, 2010

«« Palhaço ««


Experimenta a olhar-me
Olhos nos olhos, talvez vejas
Uma tristeza crua a enlaçar-me
E não aquilo que desejas

A sina do palhaço
É agilizar a vida, dar-lhe asas
Fazer esquecer as horas tortas
O circo da sua existência, é baço
Como baço é o sentar-me
Na bancada de pau e esperar
As gargalhadas, esquecendo o olhar
Triste do homem, em risos de aço.

10 março, 2010

«« Nada ««


Vesti as vestes pesadas do silêncio
Adornei-me com grinalda de coragem
Olhei o horizonte, fui na súbita aragem
Afastei-me deste meu medo doentio

Que me atulha a alma e num mísero desvio
Me afasta de mim, no anseio selvagem
Que o dia me traga a tua esbatida imagem
Tentando com isso preencher o vazio

De um saco sem fundo onde pernoitei
De um silêncio atroz à hora do nada
Num pouco de tudo, ao silêncio rio

Rio de mim e de ti, quem sabe a veste pesada
Me traga de novo o fresco do orvalho
Na coragem de correr, mesmo estando parada

08 março, 2010

«« Sã ««


Se hoje me queres dar uma flor
Guarda-a para amanhã
Guarda-a para depois, p`rá hora vã
Aquela em que o riacho seca
Com o calor da minha pele, com o suor
Que me escorre do rosto sobre o divã
Da intolerância, que começa
Quando me enfeitas feito boneca
Se hoje me chamas mãe
Não precisas fazê-lo
Tão pouco dizê-lo
Serei pelos confins do tempo, mãe
Serei bela, de tez enrugada
Terei as mãos calejadas
Pelo cabo da enxada
Serei mulher, a apedrejada
Por piropos ridículos
Como ridículo é o dia D
Se cremos em reis, não sei porquê
Existem dias Dês
Mas não, não me dês
Floresjavascript:void(0)
Guarda-as para amanhã
Amanhã serei mulher, livre e sã.

05 março, 2010

«« Meninas ««


Meninas
São vossos sonhos vendavais
São o vento, são as flores dos laranjais
Meninas, são vossos sonhos borboletas
Que esvoaçam quando desfazem os ais
Sempre que se enlaçam nos sonhos desiguais
Meninas, são a pureza das rosas delicadas

Então mulheres
Caminham e vão em frente
Carregam na alma o seu sorrir ardente
Escondem a dor disfarçada em prazeres
Outras vezes num debrochar estridente
Escondem a dor numa lágrima sorridente
Então mulheres, são o arco íris, tantas as cores

É já avó
Pelo caminho traçado
Ficou a esperança espalhada pelo prado
Ficaram os dias presos em grosso nó
Ficou o rir, e a raiva lado a lado
É já avó, no fio de cabelo esbranquiçado
Ficaram as marcas de uma vida, o seu fado
Recorda os amores, nos dias em que está só.

Meninas.
São o vento que varre a planície
São estrelas brilhantes, a meninice
É o castelo, de um reino feito de anéis
lápis-lazúli, pedras azuis pelos areais.

04 março, 2010

«« Veste ««


Que final de tarde este
As ideias correm sem norte
Por aqui, por ali, em qualquer parte
Saltitam feito escaparate

Escaparate por onde deslizo
As ideias presas na ponta
De uma faca afiada que desponta
O grito hilariante em que agonizo
Que grito é este
Qual tufão ao longe indeciso
Definindo o ponto certo e preciso
Onde solto os ideais de que fiz minha veste

01 março, 2010

«« O que vês em mim ««


O que vês em mim
Uma barata tonta de perna partida
Uma emoção a cair de velha
Quem sabe uma sorte ressentida

O que vez em mim, tu o saberás
O que vejo em ti, isso não digo
Talvez me vejas um ramo partido
Que nesta hora deslizará
Naquilo que pensas, verás que sim
Lá mais à frente ao olhares para trás
Que sou a sombra que sempre verás
Enrolando a dor em flor de jasmim.

«« Cantiga ao disparate ««


Um dia quem sabe cantarei
À terra molhada uma desgarrada
Cantarei um fado e afinarei
A garganta seca em água gelada

Um dia te canto terra de ninguém
Te canto um fado pobre, sem guarida
Falo-te do fel e da alma despida
De um povo agastado sem vintém
Gente do povo, eu te falarei
Das dores agudas, e de alguma cobiça
Falo-te ainda da mulher roliça
Que de tanto falar, ficou tão aquém.