17 outubro, 2010

«« Sem rosto ««


Sem rosto, despojou-se do sexo e da idade.
Em criança, fechava-se no quarto e vestia-se de mil máscaras, de outros tantos heróis de banda desenhada, ou dos desenhos animados, e essas máscaras davam-lhe a liberdade para sobrevoar o planeta, brincar de índios onde o cowboy era sempre o rei da brincadeira, outras vezes era o Homem Aranha, o Batman, o Tintim o Lucky Luke entre outros tantos, que se perdem na memória. No dia seguinte era a Cinderela, a bruxa má, o Capuchinho Vermelho, a Anita nas suas múltiplas aventuras.
Os pais deitavam o olho tranquilizador por entre a frincha da porta e sorriam, - a imaginação desta criança.
Depois de tanta brincadeira, sem rosto dormia tranquilamente, um sono povoado pelos seus heróis.
Sem rosto cresceu, depois da escola primária veio o liceu, mais tarde a faculdade, nos anos que se seguiram, foi professor, advogado, dentista, veterinária.
Por vezes sem rosto não terminou os estudos, foi obrigado a trabalhar para ajudar no sustento da casa, aí foi padeiro, merceeiro, o homem do lixo, a costureira. Mas, como era esperto sem rosto foi-se adaptando aos novos tempos, aprendeu com os filhos a mexer nas novas tecnologias, primeiro timidamente, mais tarde com afoiteza. Por vezes tirou um curso especializado.
O mesmo aconteceu ao sem rosto diplomado, de inicio olhou para as novas invenções com estranheza, custou-lhe largar a velha máquina de escrever, o velho rádio de pilhas, o telefone que se queria preto. mas lá foi encaixando novos conhecimentos em prol do progresso, ao mesmo tempo que se lamentava nas horas mais mortiças, aquelas em que até o sem rosto fala consigo próprio. Digo eu, lamentava-se de não ter carregado consigo a mesma facilidade que tinha em criança, a de se fantasiar em mil personagens diferentes, por entre mil ilusões.
Hoje sem rosto vive o século vinte e um, e passeia-se descontraidamente pelo Hiperespaço, pelo Hipermídia, não esquecendo o Hipertexto, depois vem o Host, do que eu gosto mais é do Host dedicado, mas que ideia, a de dizerem que a coisa é dedicada, ah, estava-me a esquecer do ICQ que é quase a mesma coisa que chat.
Como ia dizendo, hoje sem rosto é uma pessoa feliz, pode não ter rosto no bairro onde mora, devido à vida frenética, que nos fez esquecer que os vizinhos do pé da porta são a nossa primeira família, no arranha-céus com tantos gabinetes e tantos cubículos que não sabe nem o nome de quem trabalha na sua frente. Mas, conhece a florzinha, a amada, a borboleta, o faísca, o tusa, o carrancudo, e todos os outros que interagem com ele no espaço virtual.
Deviam vê-lo, em cada site uma máscara, em cada noite um herói diferente.
Sem rosto faz tempo que não se lamenta por ter deixado de ser criança, hoje lamenta-se porque todas as noites a insónia lhe bate à porta.

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