10 agosto, 2009

«« Primeiro de um livro ainda sem titulo... A fuga ««

Caminha apressada pela beira da estrada, de vez em quando respira fundo, absorvendo os aromas da terra viva, ama esta terra, como quem ama um amor impossível. Sente cada pedaço deste chão como se de um filho se tratasse. Cresceu no campo por entre sobreiros e oliveiras, a vasta planície Alentejana exerce sobre ela um efeito calmante, o abraço da mãe que nunca experimentou, o colo do pai que desconheceu.
Sente em cada inspiração a necessidade urgente de absorver esses aromas, essa mistura agridoce que lhe recorda os tempos da infância, quando rebolava sobre a erva verde, tal como um animal bravio que não aceita ser domesticado…
- Ah, onde estará essa catraia, a menina rebelde, um misto de terra e ar que sonhava mudar o mundo.
Perdeu-se dela faz muito tempo.
- Se a visse neste instante jamais a reconheceria.
Tal foi a transformação que sofreu ao deixar de ser menina, aos dezasseis anos de idade.
- Quem nasce de um caminho arrepiado tarde ou nunca encontra uma estrada sem curvas, são tantas as contracurvas.
Perdeu a noção do tempo, só sabe que caminhará em linha recta, transpondo o impossível, fugir de uma existência que lhe revolve as entranhas, tal como os corvos, quando remexem a terra acabada de lavrar.
Aqui e ali a paisagem muda de matizes, nesse instante perde-se a olhar a imensidão da planície, que se mostra generosa na primavera acabada de despontar. Tufos de margaridas rendilham por entre sargaços e giestas, as vacas pastam silenciosamente ao longo da estrada.
Consegue raciocinar…
- Nunca vi tanto gado num só local. O Alentejo virou quarteira de gado. Assim como a minha vida virou quarteira de nada.
O sol já vai alto, o suave calor do raiar da manhã, vai dando lugar a um calor abrasador, demasiado para a época do ano.
- Está tudo mudado. E como está!
Antigamente as quatro estações do ano eram delineadas, pelas diferentes temperaturas. Actualmente com o aquecimento global o ano passou a ter apenas duas estações, Inverno e Verão, a Primavera e o Outono dissimularam-se por entre as duas. No Verão tão depressa chove como as temperaturas atingem os 40º, e no Inverno acontece o mesmo, existem dias outonais seguidos de dias chuvosos com temperaturas baixíssimas. É o fim do mundo, assim falam os velhos da região.
O tio avô, que a criou e educou contara-lhe as profecias de Bandarra, um sapateiro de Trancoso que nasceu por volta de mil e quinhentos, deixando atrás de si uma vasta obra em forma de profecias, que foram passando de geração em geração, até aos dias de hoje. Algumas dessas profecias anunciam os fins dos séculos, tenta recordar-se de uma ou outra, talvez assim a jornada se torne mais leve. Mas a memória falha, o cansaço e o calor impedem-na de raciocinar, num esforço derradeiro consegue recordar-se de uma dessas profecias. Que relembra em voz alta…

- Vejo o mundo em perigo,
Vejo gentes contra gentes;
Já a terra não dá sementes,
Senão favacas por trigo
Já não há nenhum amigo,
Nenhum tem o ventre são,
Somos já vento suão,
Que não tem nenhum abrigo.

Por segundos volta a ser menina, sentada sobre os joelhos do tio ao canto da chaminé, onde o crepitar do lume embala a suas fantasias de criança, enquanto em deleite ouve as histórias que tio vai contando lentamente, numa voz suave e carinhosa, a voz daqueles que são avós de verdade.
Embrenhada nestes pensamentos segue na sua caminhada. Dói-lhe o estômago e tem a boca seca.
- Tenho tanta sede, e começo a ter fome.
As pernas já dão sinais de cansaço.
- Se ao menos ao transpor aquela curva me deparasse com um café de beira de estrada.
Aos olhos dos ocupantes dos carros que de vez quando cruzam o asfalto, mostra-se uma mulher serena, quarenta e poucos anos, pele aveludada, olhos de avelã, as madeixas do cabelo castanho claro caem soltas até aos ombros, dando-lhe um ar de menina mulher, mede quando muito um metro e setenta, pernas bem torneadas, um busto equilibrado, o rosto, uma escultura límpida, lembrando uma qualquer deusa da mitologia grega. Apenas as profundas olheiras assinalam que algo não está bem com esta mulher, mas isso os passantes não tem tempo de reparar, tal a velocidade com que palmilham a estrada.
Devem pensar que caminha pelo simples prazer de caminhar, até porque, como bagagem leva unicamente um saco de pano que transporta ao ombro, deixando adivinhar uma carteira, talvez um telemóvel e pouco mais.
Desconhecem que no seu passo ligeiro, tenta fechar o ciclo de uma vida onde o desamor constante e a intolerância se fizeram presentes.
Tantos os anseios que carregou desde tenra idade, tantas as ilusões que se esfumaram por entre primaveras, em quase todas as batalhas que se empenhou saiu vitoriosa, menos numa, a sua vida pessoal, essa tornou-se um fracasso constante, dia após dia, noite após noite, não fosse o sucesso do filho que se transformou em homem de carácter com o futuro assegurado, e a sua existência familiar seria o mais negro dos fracassos, todos os sonhos foram sendo adiados, havia sempre uma desculpa para permanecer onde estava, qualquer insignificância servia de pretexto, para manter uma vida por onde rastejava alheia ás suas necessidades. Primeiro, tinha que satisfazer as necessidades dos outros. As dela poderiam esperar.
Nessa madrugada o feitiço quebrou-se, depois de mais uma discussão sem sentido onde um grita, e o outro houve em silêncio aterrorizado, num monólogo conduzido pela loucura alcoolizada, onde pela derradeira vez foi humilhada e violada na sua condição frágil de mulher, ao dispor de uma garrafa de uísque e de músculos fortes e abruptos, a exalar ódio por todos os poros.
Finalmente conseguiu libertar-se e bateu com a porta, correu dali para fora.
Não sabe há quanto tempo caminha, muito menos a direcção que tomou, era noite serrada, uma noite fria e escura como breu.
A iluminá-la nesse instante só teve a luz pálida da lua, quarto minguante. Assim como a sua vida, a mingua equilibrada pela força que transparece no seu passo apressado.
Um camião passa rente ao seu corpo, brincadeira de um camionista entediado, é o ciclone, que a desperta da letargia em que se embrenhara.
De um salto vê-se na valeta da estrada, ao mesmo tempo que aos seus ouvidos rebenta um trovão em forma de vidros que se partem, cai sobre os joelhos e chora. Longos minutos esses, são as primeiras lágrimas que verte desde que saiu de casa, sob as suas lágrimas desfila o filme da sua vida, a ultima imagem que reteve é a de algo que se esfrangalha, não consegue decifrar essa imagem difusa, perante as lágrimas que caem em cascata, o peito contorce-se com o soluçar desenfreado. Não se apercebe do barulho de um motor a parar junto de si.
Estremece ao sentir umas mãos fortes que lhe pegam por debaixo dos braços e com cuidado a sentam no banco macio de um carro, nesse instante fecha os olhos e assim os mantêm por entre os soluços, com medo de acordar e despertar em mais um pesadelo, com o qual não sabe, nem tem forças para lidar.
O carro sai dali, apressado, apagando ao mesmo tempo que percorre os km nus da estrada o rasto de uma mulher sozinha que caminha em busca de si mesma.